Representatividade: carnaval vitorioso de 2019 celebra os esquecidos e injustiçados




O carnaval é a festa mais democrática e popular do Brasil. É até estranho que um sujeito eleito como presidente desta dita nação, que se intitula como fervoroso patriota, não saiba disso e tome a folia como pretexto para difamar o país e a sua gente aos olhos do mundo, de forma vergonhosa. Mas enquanto o dito cujo prosseguia em sua derrapada escatológica, São Paulo e Rio de Janeiro conheceram nos últimos dias as escolas de samba campeãs de seus carnavais.

Em território paulista, deu Mancha Verde, que levou para o Sambódromo do Anhembi um desfile sobre a história da princesa africana Aqualtune – avó de Zumbi dos Palmares. Já na Cidade Maravilhosa, em plena Marquês de Sapucaí, a consagrada Mangueira recontou a história do Brasil a partir da trajetória dos índios e dos negros.  Tais reconhecimentos vieram a calhar num momento como esse, em que o país – via o seu maior representante institucional – flerta com o obscurantismo. Grandes agremiações carnavalescas levaram para a avenida importantes reflexões acerca da luta e da representatividade de minorias sociais. Sem hesitação, o carnaval de 2019 repetiu a fórmula: abriu a nossa caixa preta. 

O primeiro título em 19 anos de Mancha Verde veio com o enredo “Oxalá, Salve a Princesa! A Saga de uma Guerreira Negra”, que trouxe como tema a vida de uma mulher negra, símbolo de resistência: Aqualtune. Alegorias mostraram escravidão, intolerância religiosa e direitos dos negros e das mulheres. Um dos destaques do desfile foi Renata Pereira Ventura dos Santos, a grávida que representou a princesa africana sendo conduzida ao Brasil mesmo com um filho no ventre – o futuro Ganga Zumba, pai de Zumbi dos Palmares.

A rainha de bateria da Mancha Verde, Viviane Araújo, representou uma princesa africana (Crédito: Fábio Tito / G1)

Diferentemente da escola paulista, a Mangueira não é marinheira de primeira viagem quando o assunto é campeonatos de carnaval. Em sua 20ª vitória, a Verde e Rosa criticou a história “oficial” do Brasil com o enredo “História para Ninar Gente Grande”. Ao contrário das figuras tradicionais constantes nos livros escolares, a escola carioca trouxe para a passarela os índios e negros como verdadeiros heróis, por resistirem há séculos de opressão, além de ajudarem na construção e formação do país. Batalhas entre índios e portugueses, dizimação da população indígena, representação feminina e negra, lembrança de heróis esquecidos e sátira de ícones históricos (como Pedro Álvares Cabral e D. Pedro II) estiveram apresentados nas alas da Mangueira. Ademais, o samba citou o nome da então vereadora Marielle Franco, assassinada a tiros em março do ano passado e cujo caso até hoje não teve uma solução.

Carro alegórico da Mangueira simbolizou o Quilombo dos Palmares (Crédito: Rodrigo Gorosito / G1)

Outras escolas também deram seu show em tom politizado. A Vila Isabel, no Rio, em seu desfile sobre a história da cidade de Petrópolis, também homenageou Marielle Franco em uma das alas sobre escravidão. A Paraíso do Tuiuti apostou no bom humor ao contar a história do bode Ioiô – eleito vereador no Ceará nos anos 1920 – e relacioná-la ao cenário político atual. Problemas sociais como pobreza, desigualdade e desilusão política pautaram o samba. A ala “O bode da resistência e a coxinha ultraconservadora” era uma alusão clara à polarização política, que permeou as últimas eleições presidenciais no Brasil. As coxinhas empunhavam uma arma, lembrando os apoiadores de Bolsonaro. Os bodes vestidos de vermelho eram uma referência à cor do PT e à esquerda.

Nesse andar da carruagem, pode ser que o assunto “carnaval” já está morto e enterrado para uma parcela de brasileiros. Afinal, o ano precisa começar de fato (e urgente). Contudo, se ainda acha que a onda do “mimimi” invadiu não só a folia, mas o cotidiano de norte a sul do país, (re) veja os desfiles das escolas de samba de 2019. Terá de modo acessível uma aula de história didática, popular, artística e bem malemolente. Se tem gente que gasta um tempo precioso nas redes sociais com prioridades do tipo “o que é golden shower?”, quiçá tenha disponibilidade para combater a ignorância e o iletramento político , social e histórico.

Por Leonardo Amorim



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