Nancy Hallow: reafirmação afrontosa de um "patinho feio"


Nancy Hallow: reafirmação afrontosa de um “patinho feio”

Crédito: Wagner Eduardo

Cantora drag “contraria” convenções do senso comum sobre o que é ser drag queen

Glamour. Paetês e plumas. Muito brilho e purpurina. Estilo hollywoodiano – elevado ao grau de extravagância. Eis uma drag queen “raiz”. Todavia, generalizar pode ser um erro. Prova disso é a “pirigótica” Nancy Hallow, drag de Brasília (DF) que agora segue carreira como cantora. De linhagem gótica, underground e pós-punk anos 80 e 90, a artista vem para quebrar padrões e embaralhar ainda mais a ordem natural das coisas. “O mais difícil é fazer os outros entenderem o que eu faço, o que é meu trabalho. Na maioria das vezes, as drags mais valorizadas se baseiam em uma estética mais mainstream e comercializada, as que eu me refiro como “Barbies” –  nada contra elas”, expõe.

Aliás, a controvérsia de Nancy Hallow começa pela aparência, destoante dos figurinos de “boneca” que inspiram grande parte das drags. Ao invés das beldades do mundo do entretenimento, Nancy se identifica com personagens místicas, como Santa Muerte e as deusas Brigit, Dannu, Hecate, Ixtab e Sis. A maquiagem da brasiliense é tipicamente mórbida e carregada, alusiva a tais divindades da cultura pagã.  A pele, que já é branca, fica ainda mais esbranquiçada, remetendo a um vampiro. Algo bem parecido com o Edward, da saga “Crepúsculo”.

O preto e o vermelho são as cores predominantes na composição da artista. Seja nas pinturas faciais (olhos e boca) ou nas roupas, por ora customizadas com cortes, rasgos ou estampas alusivas a cultura gótica. Um piercing, em formato de ferradura, adorna o nariz. O olhar “sombrio” às vezes é destacado com lentes especiais: ora azul, ora preto, ora vermelho...Tem ocasiões em que toda a retina é monocromática, dando um efeito típico dos filmes em que os personagens são possuídos por seres malignos. A imensa cabeleira lisa cor de fogo é o toque final para a caracterização de uma drag que parece ter vindo de um submundo onde forças estranhas ditam as regras e o exótico é a lei.

"Prazer, a pirigótica que você mais respeita" (Reprodução: Instagram)

Felipe Lucena, 22 anos, criador e criatura de Nancy Hallow, conheceu a arte drag por meio de um amigo que a exercia. Com ele, aprendeu todos os aspectos do universo, inclusive a admiração pelo programa “RuPaul’s Drag Race”. A primeira vez que Felipe se caracterizou como drag foi durante a uma viagem para Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Em uma situação embaraçosa, por sinal: fora confundido com uma drag queen que seria atração da noite em uma casa noturna. O jovem mal sabia se maquiar e nem tinha um nome definitivo. Peruca e roupa estavam longe de se harmonizarem. “O que foi mais importante pra mim naquele dia foi a energia libertadora, empoderadora e infinita que senti a partir do momento em que me colocaram no palco por “acidente”. Eu nem sabia ao certo o que estava fazendo!”, conta.


Contudo, o verdadeiro atino para que Felipe criasse a sua persona drag veio quando assistiu a uma série de filmes com a icônica Divine. “Ela me mostrou que eu não precisava ser uma drag padronizada, bonita, de acordo com a ideia de beleza que a maioria das pessoas tem. Eu poderia ser, agir e falar através da minha arte drag sobre muitas coisas que as pessoas evitam, ou até mesmo assuntos mais sérios que ainda não foram abordados. Minha drag surgiu com o propósito de romper barreiras e chocar as massas”, assegura.

A escolha do nome artístico partiu de duas inspirações. Nancy é uma referência à antagonista do filme “The Craft”, cuja personalidade reserva um lado agressivo, empoderado e insubmisso. Hallow tem ligação com o sagrado, o espiritual. Agregado ao primeiro nome, ganha status de heroísmo.

Um leão por vez 

O início de Nancy Hallow como cantora não foi nada fácil. “O lance da música surgiu quando eu estava próxima de completar dois anos como drag. Eu havia acabado de sair de uma tradição de bruxaria que, embora eu não tenha ressentimentos, ia contra muitos dos meus ideais. Eu estava vivendo um relacionamento confuso e infeliz. Sentia que minha carreira mal havia começado e estava prestes a descer ladeira abaixo”, descreve.

Para manter o sonho vivo, Nancy precisou ter jogo de cintura para administrar cada passo dado. “As oportunidades para drag queens são poucas. Independentemente de onde você está, a competição é enorme. As casas noturnas são poucas e Brasília passa por uma onda de panelinhas e cotações”, reclama.


Diante deste cenário, mesmo com pouco dinheiro, Nancy resolveu apostar na música como o seu diferencial para se destacar. “Eu havia participado da gravação do videoclipe de “Ubercat”, single do MC Júnyork, e conheci os produtores. Foi aí que pedi ajuda através de uma vaquinha online com a intenção de arrecadar fundos para lançar o meu primeiro single”, conta.  

Em outubro de 2017, Nancy divulgava a sua primeira música: “HallowHÍMEN” . Pouco depois, em fevereiro de 2018, reuniu o debut single e mais sete músicas inéditas no EP “Histeria”. O trabalho aguçou a curiosidade de muitos, principalmente da comunidade LGBTQI. Mas o mesmo também enfrentou julgamentos negativos. “É claro que recebi críticas e comentários cheios de ódio. Porém, são coisas que eu já esperava, levando em consideração as reflexões que causei com “HallowHÍMEN”, revela.

Realmente, “HallowHÍMEN” (um notório jogo de palavras com sentido sexual) é um produto audiovisual que não quer fazer apenas “ir até o chão”. A faixa em questão, que sintetiza um universo paralelamente gótico e lascivo, apresenta um enredo sobre uma garota com uma vida dúbia. De um lado, está uma jovem prestativa e bonita, perfilada como “santa”. Ela mora com a avó, que é fervorosamente católica. Porém, a outra faceta oculta uma libertina, que se esbalda em aventuras sexuais às escondidas. No clipe, definido pela artista como “nada convencional”, “polêmico” e “blasfêmico”, vemos que a neta é capaz de dopar a própria avó para dar suas escapulidas.


 

Antes de mais nada, a música é autobiográfica. “HallowHÍMEN é uma sátira que fiz ao fato da minha vó nunca ter sabido lidar com a situação de eu ser gay e superafeminado, embora ela sempre soube, desde que eu era criança”, relata a drag queen.  

Com a repercussão do single e do vídeo de “HallowHÍMEN”, Nancy recebeu várias propostas de trabalho na capital federal. Seu nome adquiriu credibilidade entre produtores, DJ’s e drags locais. No entanto, a maior conquista foi o convite para fazer residência em uma famosa boate da cidade, onde costuma performar nos fins de semana.


Fora da caixa

Apesar de ser novata no nicho, Nancy Hallow se considera um símbolo de subversão ao que é ser drag. “É bastante difícil pro público associar o que você faz com a arte drag quando você vai totalmente contra a correnteza das águas do que eles imaginam ser uma drag queen. Geralmente, o público imagina uma diva. Eu nunca me vi como uma diva”, expressa.

A concepção de Nancy Hallow foge do padrão “divônico” e reflete fortemente a sua vivência. “A ideia de diva pra mim é muito controversa. Eu cresci ouvindo Marilyn Manson, Emilie Autumn, Amanda Palmer, The Cure, Siouxsie and The Banshees, Bauhaus etc. Eu era uma criança solitária que não tinha muitos amigos, não falava muito e que virava madrugadas assistindo a filmes de terror”, detalha. Nacionalmente, os ídolos que a inspiraram na carreira musical foram são Linn da Quebrada e Jaloo. "Eu vejo um futuro promissor nas músicas delxs e acredito ser o som de uma nova geração", justifica. 


Artisticamente, Nancy se engaja em desconstruir estereótipos e paradigmas acerca da arte da qual é adepta. “Na verdade, eu quero representar todos aqueles que nunca se sentiram divas, e que não precisam ser divas para serem incríveis, maravilhosas e respeitadas”, manifesta.

Narrar a própria história para desmistificar a figura do gay: é o que Nancy faz. “Eu sempre fui uma bixa afeminada (sic) e estranha, que tem gostos peculiares e não se identifica com o que a maioria do público gay se identifica. Por exemplo: o conceito de “diva” demorou muito para surgir na minha vida. Eu nunca entendi a fascinação que muitos gays tinham por divas do pop, embora eu respeite. Porém, só hoje em dia eu compreendo que essas mulheres são fonte de empoderamento e inspiração para eles”, argumenta.

Uma verdade entre muitas

Com o atual “boom” de drags cantoras, Nancy acredita que é uma oportunidade para se divulgar importantes causas. No entanto, o viés mercadológico é mais forte. “Drag music tem falado sobre empoderamento? Sim. Sobre liberdade? Também. Sobre romper estereótipos e trazer novas desconstruções de velhas opiniões e preconceitos? Sem sombra de dúvidas. Porém, é mais inegável que a drag music no Brasil tem sim seguido uma onda mais mainstream e comercial”, opina.


Ainda que seja uma das figuras do movimento, Nancy qualifica o seu trabalho de forma particular. “A drag music é uma resposta para muitas problemáticas diferentes que existem. Não há um único assunto. Não vejo a minha música como resposta, mas como um questionamento. Quero fazer as pessoas se questionarem sobre diversos assuntos. Não me vejo as dando respostas pra nada”, exprime.
Livro aberto

Ouvir o EP “Histeria” é uma espécie de invasão a intimidade de Nancy Hallow. É entender suas convicções: gostos e contragostos, experiências e inseguranças, vitórias e derrotas, de onde veio e para onde vai.

Capa do polêmico EP 

Por meio de sua arte, Nancy Hallow levanta debates sobre acepções de gênero e orientação sexual. “A maioria das minhas músicas tem falado bastante sobre a perspectiva de um menino que não necessariamente se identificaria como gay pelo fato de se considerar uma pessoa não-binária, lidando com o preconceito do mundo a sua volta e não se sentindo aceito nem no meio gay, por ser tão fora dos padrões que isso causa repulsa na maioria”, explica.


Liberdade sexual é o que impera em boa parte do repertório da “pirigótica”. Como vimos anteriormente em “HallowHÍMEN”, Nancy concebeu um projeto bem puritano no que se refere à abordagem do tema. “Eu sinto que nós ainda temos uma resistência de muitas artistas drags ao falar sobre sexo de uma forma explícita. E quando eu me refiro a explícita, digo de uma forma bem escrachada mesmo!”, denota. 

Em “Fast Foda”, por exemplo, a cantora fala de um comportamento típico dessa era atual de tecnologia e informatização: os relacionamentos virtuais. Nancy demonstra como os aplicativos facilitam os encontros casuais, sem compromisso. O nome da faixa fala por si só. “O Predador” é outro bom exemplo do reforço do conceito sexual do EP. Nessa música, onde são combinados elementos de eletrônica, eletro-gótico, EBM, industrial e pop, ela relata nua e cruamente a descoberta de um “prazer insano” por meio do sadomasoquismo.

Ademais às práticas sexuais, Nancy Hallow também se desnuda espiritualmente. Nesse sentido, a faixa-título do EP é provocativa. Ela vem acompanhada de um clipe “fresquinho” (lançado recentemente), onde a sensação dominante é de perturbação, descontrole. Tem também “Hallow Rap”, música na qual a artista incorpora o lado rapper para contar a sua trajetória, destacando a superação dos perrengues.



Papo reto

“Além da sarração na pirigótica e muitos afrontes, vocês podem esperar uma artista que não tem medo de ser, falar, fazer e agir do modo que pensa, que tem desejo de por seus ideais em campo e mostrar que aquelx (sic) jovem que não segue os padrões da “normalidade” não é uma aberração. Mas sim um pretexto para alguém com algo a mais para oferecer a esse mundo e causar uma mudança nesses preconceitos tão destrutivos que a sociedade brasileira ainda carrega. Como digo na minha música “Bruxaria”: “sou a soberana que o Brasil está prestes a conhecer” (Nancy Hallow).







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