Lições de vida sob a
luz vermelha*
Entre o “sobe e desce”
da Guaicurus, a história de uma prostituta que é digna de novela
Uma
mulher extrovertida, intensa e sem papas na língua. É do tipo que gosta de
quebrar o gelo em conversas iniciais. O seu repertório de interação é vasto e
inclusivo, pois é quase impossível para quem está com ela ficar inerte com tantos
casos e piadas, “temperados” com uma risada contagiante. Além de bater papo, adora
assistir filmes de romance. Presumo que tal gosto se dê pelo acentuado
histórico de paixões e flertes que movimentaram a sua vida. Também acredito que
ela esteja feliz por agora, pois o Cruzeiro, time do seu coração desde a adolescência,
consagrou-se pentacampeão da Copa do Brasil derrubando o Flamengo. Daria para
imaginar a cruzeirense impetuosa comemorando o pênalti batido por Thiago Neves,
que foi a gota d’água para a efervescência celeste? Creio que sim.
Embora
ultrapasse os 60 anos, Laura Maria do Espírito Santo se mostra enérgica, em um
estado de ser que irradia disposição. É mãe, prostituta e vice-presidente da Associação das Prostitutas de Minas
Gerais (Aprosmig).
O
rosto, marcado pelas experiências acumuladas ao longo da vida, emerge uma
expressão de quem tem atitude e que pouco se lixa com que os outros pensam.
-
Sou feliz com a minha profissão. Tudo o que eu faço é com amor. Não me
arrependo de nada - afirma, com a postura firme.
Laura
vem do mesmo berço que Clara Nunes, um dos maiores ícones da MPB. Aliás, Laura
se considera amante do estilo musical. Ambas são naturais de Paraopeba,
cidadezinha encravada no interior de Minas. No entanto, o destino de Laura
difere do da sambista. Aos 18 anos, acompanhando os pais e os três irmãos,
Laura saiu do torrão natal em um caminhão de mudanças rumo à Belo Horizonte.
A
profissão de costureira em uma loja de confecções de camisa no bairro Carlos
Prates deu início a nova vida na capital. Já com 25 anos, viveu uma história
típica de novela das seis. Laura conheceu um rapaz de origem rica e abastada,
cuja família morava no Mangabeiras – bairro nobre de BH. Desse relacionamento,
nasceu sua única filha: Kelly. Só que o nascimento da criança fez a vida de
Laura virar de cabeça para baixo. A jovem moça sofreu com a rejeição da família
e do próprio amado.
-
Minha mãe não aceitava filha solteira com criança e me colocou para fora de
casa. O pai da minha filha disse que eu podia queimá-la, jogá-la fora ou
colocá-la na porta de qualquer um, menos na dele. Minha irmã havia dito para eu
deixar a criança no hospital – lembra.
A
situação já estava complicada, mas ficou pior. Além da família, também perdeu o
emprego na loja. Com todas as portas fechadas para ela, Laura afirma que não
teve opção. Foi então que a prostituição introduziu um novo capítulo em sua
biografia.
-
Desempregada, eu realmente não tive escolha. Pela minha filha, sou capaz até de
matar e morrer – manifesta.
Batendo ponto
Há
mais de três décadas, Laura trabalha como prostituta nos hotéis da Rua
Guaicurus, conhecida por ser o principal point
turístico do sexo no estado de Minas. O novo emprego possibilitou que Laura
sustentasse a filha de forma autônoma, uma vez que o pai e os avós paternos
sempre foram omissos e ausentes na criação.
-
Encaro [a prostituição] como um trabalho. Para ser uma boa prostituta, tem que
respeitar o cliente, ser uma mulher educada e, porque não, honesta. Uma garota
de programa tem que saber “fazer” o cliente – pontua.
Apesar
do período turbulento pelo qual passou, Laura não esconde o orgulho que tem por
Kelly, atualmente com 32 anos.
-
Hoje, minha filha mora na Europa. Ela faz doutorado. Por conta disso, me sinto
uma mulher guerreira. Até porque, eu não tenho vergonha do que faço. Entro e
saio do hotel de cabeça erguida – declara.
Entretanto,
Laura nunca contou para filha sobre a real profissão que exerce. A mãe expressa
que teme o preconceito que pode sofrer, além de recear que tal fato abale a
relação entre elas.
Expediente
A
memória de Laura ainda guarda com lucidez os primeiros programas que fez. Era
uma moça tímida, oriunda do interior e de família conservadora, que veio
contando com a sorte para encarar o novo desafio. Como era uma garota bonita e
novata no ramo, Laura mexia com o imaginário de muitos clientes e era muito
demandada. Seu primeiro ponto de atendimento foi em uma casa na Avenida Pedro
II. Só depois que o lugar fechou, Laura se deslocou profissionalmente para a
região da Guaicurus.
Para
a garota de programa veterana, as dificuldades são inerentes à prostituição.
Ela se recorda que, por falta de segurança, muitas mulheres eram agredidas
pelos clientes. Outras, por falta de aconselhamento, envolviam-se com drogas. Por
causa da prostituição, Laura se tornou dependente do cigarro. Porém, com o
passar dos anos e por vontade própria, abandonou o vício.
Se
antigamente a violência era mais corriqueira na rotina das prostitutas da
Guaicurus, atualmente, de acordo com Laura, já não é mais assim. Ela enfatiza
que os hotéis contam com seguranças e detectores de metais, além do apoio da
Polícia Militar.
Clientela cativa
A
fidelidade é marca registrada na cartela de clientes de Laura. Segundo a prostituta, ela atende muitos homens
de quem é amiga há 20 anos. Em função da longeva relação profissional, é de
praxe Laura receber presentes, como joias, roupas, utensílios domésticos e até
jantares especiais.
A
boa relação com os clientes já rendeu a prostituta uma história de amor: um
relacionamento de oito anos com um deles. Até moraram juntos. O término só ocorreu
devido ao falecimento do parceiro, um idoso, em 2004.
Ativismo
Desde
2009, Laura está na vice-presidência da Aprosmig, sendo também uma das
fundadoras da entidade, que advoga em causas a favor das garotas de programa.
-
A Aprosmig atua pelo bem-estar delas. Oferecemos médico, psicólogo e assistência
jurídica. A fundação da associação foi justamente para combater o preconceito
em torno das meninas. Recebíamos muitas reclamações de que elas eram
hostilizadas – descreve.
A
vice-presidente toma frente em várias iniciativas da associação, como por
exemplo, o “Miss Prostituta”, realizado anualmente, no dia 28 de setembro. Além
do concurso de beleza, são feitas ações em parceria com a Secretaria de Saúde,
como a distribuição de preservativos em espaços públicos e eventos,
organizações de festas beneficentes na Guaicurus e viagens para congressos e
conferências nacionais e internacionais.
A
instituição também se faz por meio de voluntariado. Para a Copa do Mundo de
2014, Laura conseguiu junto a voluntários disponibilizar cursos gratuitos de inglês,
espanhol, italiano e francês.
Tesão pelo ofício
O
desejo de Laura é continuar fazendo programas enquanto puder.
-
Me imagino com 99 anos, de bengala, satisfazendo meus clientes e sendo feliz no
que faço – idealiza.
Na
visão de Laura, ser prostituta não é condição, mas sim um prazer. Apesar de
morar na região de Venda Nova, é na Guaicurus que ela se realiza e se diverte. Com
um espírito vivo e autêntico, não é preciso empreender muito esforço para
imaginar o quanto Laura contagia a zona do meretrício mais agitada de BH.
*Perfil produzido em 2015 durante o curso de
jornalismo no UniBH. Para essa postagem, o conteúdo foi reescrito.
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