Matrizes culturais refletem aspectos da natureza andrógina*
Andróginos estão além das passarelas de moda
e dos shows musicais
Por Leonardo Amorim
Apesar de serem setores que incidem de
forma intensa o estilo andrógino, a moda e a música não são os únicos. Outras
vertentes culturais também usam a androginia para questionar a gênese humana.
São escritores, pintores e cineastas que evidenciam em suas obras personas
andróginas e exploram a ambiguidade dos gêneros.
No universo das artes, o caráter
andrógino era adotado por escultores gregos desde a Grécia Antiga, que
costumavam fundir aspectos masculinos e femininos em suas criações.
Restauradores modernos, como o italiano Michelangelo (1475-1564), continuaram
com o mesmo trabalho ao reconstruir imagens de efebos (rapazes adolescentes)
como se fossem moças. Na Índia, os antigos baixo-relevos não mostravam as
divindades separadas por sexo. A partir disso, interpreta-se que elas eram
perfeitas justamente por serem masculinas e femininas. O pintor renascentista
Leonardo Da Vinci (1452-1519), ao representar figuras masculinas, o fazia com
traços femininos. Já Marc Chagall (1887-1985) pintava homens e mulheres com
formas ambíguas. O ilustre americano Andy Warhol (1927-1987) fez um retrato da
atriz Marilyn Monroe que é ele próprio.
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Marilyn Monroe? #SQN (Crédito: Reprodução) |
No cinema, quando o assunto é
androginia, dois filmes merecem ser lembrados por explorarem o tema de forma
correta: Morte em Veneza (1971), do italiano Luchino Visconti, inspirado numa
novela do escritor alemão Thomas Mann, e Teorema (1968), do também italiano
Pier Paolo Pasolini. No primeiro longa-metragem, a trama se desenvolve a partir
da história de um velho compositor que se apaixona por um adolescente,
personificando nele o andrógino como imagem de contemplação estética ambígua.
Já a segunda obra cinematográfica mostra uma espécie de “anjo exterminador”,
que seduz todos os membros de uma família burguesa conservadora.
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Um desconhecido seduz todos os membros de uma família italiana burguesa: pai, mãe, filho, filha e empregada - esse é o enredo de "Teorema", filme de 1968, do italiano Pasolini (Crédito: AdoroCinema) |
No âmbito das letras, a androginia
ganha vitalidade em obras clássicas como Orlando (1928), de Virginia Woolf, e
Séraphîta (1835), de Honoré de Balzac. No livro da escritora inglesa, o
personagem principal é representado ora como homem, ora como mulher, no
decorrer de sua vida. Aliás, o romance foi adaptado para as telonas pela
diretora inglesa Sally Potter. Enquanto isso, o escritor francês traz em sua
obra a história do ser andrógino que provoca uma paixão dúbia em Minna, que o
toma por um rapaz (Séraphîtus), e em Wilfrid, que o considera uma moça
(Séraphîta). A literatura brasileira também apresentou a duplicidade da
androginia em Grande Sertão Veredas (1956), de João Guimarães Rosa. A narrativa
mostra o personagem Diadorim, que desperta um amor ambíguo em Riobaldo.
Andróginos transcendentais
A explicação para a origem da
androginia, a propósito, está na mitologia grega. Platão reproduziu em O
Banquete o relato feito pelo comediógrafo grego Aristófanes. De acordo com a
narrativa, resumidamente, seres dotados de características masculinas e
femininas (duas faces, quatro mãos, quatro pernas...) tentavam subir ao Monte
Olimpo, morada dos deuses gregos, em busca de poder. Zeus, o chefe de todos,
pressentiu o perigo e decidiu punir os andróginos (“andrós”, macho, e
“guynaikós”, fêmea) cortando-os ao meio, separando assim, homem e mulher. Ou
seja, a androginia já era uma preocupação entre as civilizações antigas, que
tentavam explicá-la como o arquétipo que gerou os lados masculino e feminino.
Ao longo da história da humanidade,
muitas culturas reverenciavam e reverenciam a figura andrógina como entidade
divina. Acredita-se, por exemplo, que Dionísio, deus grego do vinho e da
sensualidade, e Hapi, deus egípcio do Nilo, eram andróginos. Em regiões da
África, do Caribe e da América do Sul, os praticantes do voduísmo honram
Obatalá, andrógino criador da humanidade e portador da paz. Entre a cultura
viking, o semideus venerado era Breunnhilde Valkyrie, filha hermafrodita de
Wotan, rei dos deuses. Divindades com qualidades andróginas também fazem parte
da crença de religiões hindu, cristã e wicca.
*A matéria,
publicada em junho de 2016, fez parte do projeto “Androginia – Transgressão à
Heteronormatividade Binária”. Para mais detalhes da iniciativa , clique aqui.
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