EDITORIAL
Pasteurização
da cultura negra
Um turbante apresentou a muitos brasileiros
pela primeira vez o conceito de “apropriação cultural”. Em fevereiro deste ano,
discussões sobre a temática pipocaram nas redes sociais após uma estudante de Curitiba reclamar no Facebook de que foi criticada por mulheres negras por usar o adereço, fortemente associado a movimentos de matriz africana. Na publicação,
a jovem se justificou dizendo que era leucêmica e que o estava usando em
decorrência do tratamento.
O episódio da jovem branca de Curitiba, atacada na internet por usar um turbante, veio a ensinar a maioria dos brasileiros o que é apropriação cultural. Reprodução: Facebook
A polêmica serviu para fomentar a seguinte
problematização: pessoas brancas podem usar livremente objetos e símbolos
identificados à cultura negra? Entretanto, deve-se enfatizar que para promover
tal debate, é primordial que ultrapassemos o âmbito individual da questão. Ou seja, devemos expandir as conversas para além deste
acontecimento.
O fenômeno da apropriação cultural consiste
na tomada de elementos de uma cultura minoritária por uma cultura dominante,
que os incorpora como se fossem seus. Em síntese: mais do que usar um turbante
para fins estéticos, deve-se pensar que o acessório afro representa valores de
uma etnia. Especialistas de Ciências Sociais e Humanas como antropólogos,
filósofos e sociólogos apontam que os setores midiático, publicitário e
fashionista são os maiores responsáveis pela marginalização dos símbolos
negros, que perdem a sua essência ancestral e adquirem uma conotação consumista
ao serem vendidos como produtos de massa.
Apesar do turbante ter sido o pivô dos
recentes “bate-bocas” em torno do tema, há diversos exemplos anteriores que
corroboram o “embranquecimento” de aspectos da ancestralidade africana e provam
que tal questão não é nova. É o caso do axé music,
gênero musical que surgiu na Bahia dos anos 80 como uma manifestação cultural
de pessoas negras. Nos dias de hoje, o ritmo embala carnavais de norte a sul do
Brasil e faz com que tanto negros quanto brancos tirem o pé do chão. Além do
axé, há uma série de elementos culturais negros na “versão branca”: cabelos
rastafári, hip-hop, desfiles de escolas
de samba...
A principal crítica do movimento negro em
relação à apropriação cultural é de que ela camufla o racismo e transmite a
falsa sensação de unidade de raças. O que ocorre é que enquanto uma garota
branca de turbante é it girl, uma
menina negra com o mesmo adereço não é vista como ícone de moda ou beleza. O
viés de tratamento é diferenciado de acordo com a cor da pele, apesar de ambas
usarem o mesmo acessório.
Bem mais do que poder ou não usar dreads, cantar rap ou jogar capoeira, a definição de apropriação cultural circunda
o respeito às tradições de um grupo. Imersos em uma sociedade capitalista,
estamos acostumados a converter tudo em prol da lucratividade. Assim, a
banalização de elementos da cultura negra, sem o mínimo propósito de reflexão
sociocultural, atende a essa lógica mercantilista. Isso sem falar na
invisibilidade e no silenciamento da população negra, que vê a sua cultura
sendo descontextualizada.
O episódio do turbante demonstra que são
necessários diálogos mais centrais e profundos acerca da apropriação cultural, embora
o problema não advenha de hoje. Além do mais, o assunto envolve pontos-chave, como racismo e etnocentrismo. O que está em jogo não é o fato de um branco
querer usar algo da cultura negra ou africana, mas sim a extinção das raízes
que a construíram. É não deixar que os
elementos culturais percam o caráter real, histórico e social. Ou se discute o
fenômeno em um patamar avançado ou figuras como Anitta e Kylie Jenner continuarão
a aparecer na mídia se apropriando de itens da cultura negra com finalidade
narcisística.
Leonardo
Amorim
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