CRÍTICA ENSAÍSTICA - Menage à trois: bate bola, sessão pipoca e sarau com Veríssimo

CRÍTICA ENSAÍSTICA

Menage à trois: bate bola, sessão pipoca e sarau com Veríssimo

A compilação “A Eterna Privação do Zagueiro Absoluto” reúne as melhores crônicas de futebol, cinema e literatura de Luis Fernando Veríssimo. Na obra, o autor se transparece em textos ora afetivos, ora mais críticos. Grande parte deles apresenta o caráter memorialista, permeado por uma linguagem, ao mesmo tempo, romancista e coloquial. O livro convida o leitor a uma viagem pelas memórias e intimidades do cronista. Por meio das 73 crônicas escolhidas para a coletânea, o cronista se desvela em três facetas: um torcedor apaixonado por futebol, um cinéfilo sensível e um admirador nato das narrativas literárias.

Livro é resultado de uma compilação das melhores crônicas de Luis Fernando Veríssimo sobre futebol, cinema e literatura. Reprodução: Google Books

A priori, nota-se que majoritariamente a obra abarca a temática futebolística. Para este universo, as letras aliadas à genialidade de Veríssimo originaram 43 crônicas. Algumas delas trazem à tona a paixão voraz que o autor nutre pelo esporte. Elas estão no capítulo inaugural “Fome de Bola” e provam que a relação do autor com o futebol transcende o mero gostar.São os casos de “A Primeira”, cujo enredo gira em torno da primeira bola que ele ganhou quando criança, e “Arrasador”, na qual o filho de Érico Veríssimo relembra o tempo em que viu o craque Domingos da Guia jogar (isso em meados dos anos 40).

Aliás, Veríssimo buscou na crônica futebolística “O Fim de um Mito” a inspiração para o titulo da coletânea. Nela, o cronista relata que, historicamente, a Seleção brasileira nunca teve um bom zagueiro que soubesse marcar. Ao falar de tal “problema”, Veríssimo o pontua da seguinte forma: “Vivemos eternamente essa privação do zagueiro absoluto, como os portugueses esperando a volta de Dom Sebastião, e ela se integrará ao nosso caráter” (VERÍSSIMO, 1999, p.19).

No capítulo “O que elas têm a ver com isso”, a pauta ainda é a maior paixão nacional. Porém, em grande parte das crônicas, Veríssimo passa a bola para o narrador observador. O mote central dos textos são as mulheres. Ou seja, aquelas que são obrigadas (ou não) a lidar com a loucura dos companheiros pelo futebol.  Em suma: a representação do futebol como um dos conflitos nos relacionamentos.          
                                     
Sob a ótica humorística de Veríssimo, jogadores e técnicos são apresentados em crônicas do capítulo “Homens em campo”. Aqui, a tonalidade em primeira pessoa emerge novamente. O cronista assume a posição de comentarista e dá “pitacos” sobre funções e performances dos personagens, como faz em “Imarcavéis” e “Duas Velas”. Nomes como Raí, Edmundo e Zagallo passam pelo crivo analítico do sensato futebolista. No capítulo “Um brasileiro na Copa”, ele rememora momentos que vivenciou assistindo as partidas da competição.

Mas o futebol não é o único prazer na vida de Veríssimo. A arte cinematográfica também reacende boas memórias do autor. Em “O melhor começo”, primeiro capítulo voltado para o tema, o cronista deleita-se em lembranças de divas do cinema que o fascinaram, como Rita Hayworth em Gilda. Além disso, Veríssimo não esconde a admiração pelo trabalho dos diretores Kurosawa e Kubrick. Já no tópico “Sobre comédias e vilões”, o destaque vai para os malvados favoritos de Veríssimo, como Al Pacino e José Lewgoy,que ganham dedicatórias pelas atuações brilhantes ao encenarem o lado negro da força.

Se dizem que em coração de mãe sempre cabe mais um, com Veríssimo isso ocorre em relação à literatura. Honrando o ofício, o cronista compartilha, subjetivamente, as preferências literárias nos capítulos “Realismo Fantástico”, “Secos e Suculentos” e “O Feitiço do Livro”.

De forma geral, uma sacada das crônicas de Veríssimo é bem conhecida: a adoção da ironia no tratamento de questões políticas e sociais. Na obra, o autor faz isso em diversos momentos e independentemente do tema.  Em “O Ponto de Ruptura”, por exemplo, o cronista reporta o hábito do ator italiano Marcello Mastroianni de soprar balões até estourá-los. A justificativa era de que “precisava descobrir o ponto exato que antecedia a ruptura dos balões, o exato ponto em que um sopro, um hálito a mais faria o balão estourar na sua cara (VERÍSSIMO, 1999, p.119). A princípio, parece se tratar de um hobby do galã. Mas genialmente, Veríssimo faz uma transposição para a realidade ao sul dos trópicos: “Às vezes acho que o Congresso brasileiro está atrás do mesmo ponto de ruptura, do mesmo limite de até onde pode ir” (VERÍSSSIMO, 1999, p.120).

Apesar de tocar em feridas da sociedade, como corrupção (“O problema do time da Nigéria parece ser o problema do país: o que fazer com suas riquezas”, p. 80) e racismo (“Só não era titular, diziam, porque era negro”, p.18), Veríssimo contrabalanceia a amargura com o sentimentalismo. Em crônicas como “A Primeira”, o escritor embrenha-se a fundo na memória para tornar o fato afável e palatável.

Nenhum prazer do mundo se igualava ao cheiro do couro de uma bola de futebol recém-desembrulhada latejando em suas mãos” (VERÍSSIMO, 1999, p.12).

Os textos de Veríssimo são verdadeiras declarações sentimentais no que se refere aos deleites da vida. Por mais passadas que sejam, o autor ressignifica tais lembranças em expressões amenas e detalhistas.

Minha geração deve muito as coxas da Silvana Mangano e aos seios da Martine Carol. Os seios da Martine Carol foram os primeiros que muitos de nós vimos numa tela, no tempo em que cada terceira palavra de filme americano não era “fucking” e só havia sexo em filme europeu. (VERÍSSIMO, 1999, p 118).

Enfim, ler as crônicas eleitas de Veríssimo nos âmbitos esportivo, cinematográfico e literário é circundar o universo intimista de um dos maiores escritores brasileiros da contemporaneidade. Mais do que exteriorizar relatos, o humor típico do cronista reflete o modo como se vê e vive a vida. Não seria difícil imaginar Veríssimo deitado em um divã e recontando tais histórias. A trilogia de paixões do cronista o denuncia como um ser mundano. Assim como nós, reles mortais. 

FICHA TÉCNICA

A Eterna Privação do Zagueiro Absoluto

Autor: Luis Fernando Veríssimo
Ano: 1999
Editora: Objetiva
Cidade: Rio de Janeiro
Páginas: 196
Acabamento: Brochura



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