Artistas unem música e androginia como postura sociopolítica*
O colunista de música do G1, Mauro Ferreira, fala
sobre o encontro entre os dois universos
Por Leonardo Amorim
O “boom” da androginia não é um
fenômeno recente na música pop moderna. Nos anos 70 e 80, o icônico David Bowie
foi um “divisor de águas” ao ultrapassar a barreira de gêneros através do modo
de se vestir e dos personagens andróginos criados por ele, como Ziggy Stardust.
Além dos figurinos exóticos, o artista cantava músicas nas quais revelava, sem
sombra de dúvidas, o seu lado feminino.
De acordo com o jornalista e crítico
musical Mauro Ferreira, o pioneirismo do camaleônico popstar abriu caminhos
para que muitos outros músicos adotassem o caráter andrógino como referência
artística. Para Ferreira, a primeira metade da década de 1970 pode ser
considerada como o início do flerte entre o mercado musical e a androginia. Ele
cita o lançamento do disco de Bowie, “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and
The Spiders From Mars”, em 1972, como um dos acontecimentos que caracterizam o
começo dessa “relação”. Aliás, tal álbum serviu para expor e evidenciar Ziggy,
persona andrógina do artista britânico. Coincidentemente, na mesma época, o
músico se declarou publicamente como bissexual.
Em termos de androginia, David Bowie é uma espécie de escola pragmática (Foto: David Shankbone / Flickr Commons (01/01/2005)
Décadas depois, o alter ego
feminino do astro inspiraria o excêntrico Marilyn Manson a criar e personificar
Omega, que surgiu em 1998 para o álbum “Mechanical Animals”. O encarte do
projeto trazia o rockstar bem
andrógino: corpo nu, sem pelos, portando seios e com a genitália indefinida. O
ser encarnado por Manson é caracterizado como solitário e exagerado, que canta
sobre sexo, drogas e fama.
Para o colunista do G1, a
musicalidade andrógina é reflexo da libertação sexual. “Em âmbito mundial,
tivemos David Bowie, e a nível nacional, Ney Matogrosso”, menciona. Na visão de
Ferreira, Bowie e Ney são os maiores embaixadores do movimento andrógino no
meio musical. Além disso, ele destaca o tom político e social da androginia. “A
tendência andrógina é uma atitude contestadora. No caso da música, serviu para
quebrar preconceitos”, avalia.
Nas décadas de 70 e 80, viu-se
emergir uma nova geração artística pautada na androginia. Durante essa era,
foram reveladas personalidades como Boy George, Freddie Mercury, Prince, Grace
Jones, Annie Lennox e Alice Cooper. Sobre a recepção do público, Mauro Ferreira
enfatiza que houve uma aceitação, principalmente entre os jovens. “As pessoas
aceitam melhor gente de cara pintada e mais próxima do estereótipo feminino do
que um gay assumido, de cara limpa. O sucesso do Secos & Molhados, por
exemplo, foi muito popular”, sublinha.
A indústria musical também foi
visionária ao reconhecer o potencial da tendência andrógina. “O mercado investe
no que vai dar dinheiro. Cantores de estilo marcante como Bowie e Ney vendiam
milhões de discos e faziam muitos shows. Portanto, são sinônimos de sucesso”,
lembra. Dentre os gêneros musicais, a androginia se perpetuou de forma
setorizada entre artistas do rock e
do pop. “Por serem universos mais
liberais, o caráter andrógino foi adotado com mais vigor”, pontua Ferreira.
Ao sul do trópico
Em terras tupiniquins, o artista que
evocou a gênese andrógina na MPB foi Ney Matogrosso, oriundo do Secos &
Molhados, grupo do qual fez parte entre 1973 e 1974. O cantor, conhecido pela
ousadia e irreverência, fez um estrondoso sucesso em plena Ditadura Militar e
desafiou muitos conservadores da época por meio das roupas e maquiagens
extravagantes, das canções subversivas e das exibições performáticas. “Os
primeiros shows dele foram marcados por muita sensualidade em palco”, enfatiza
Ferreira. O jornalista classifica Ney como o principal precursor da “cena
glitter” brasileira. Outros artistas contemporâneos a Ney, remanescentes da
Tropicália, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, também são destacados pelas
nuances andróginas. “Tivemos, por exemplo, o Caetano vestido de Carmen
Miranda”, exemplifica o crítico musical, que ainda ressalta o nome do “nem tão
conhecido” Edy Star. O cantor baiano lançou em 1974 seu primeiro e único álbum,
Sweet Edy, cujo conceito é absolutamente andrógino.
Segundo Ferreira, apesar da androginia
não ser uma expressão marcante da música brasileira, ultimamente, o cenário
está mais propício a tal tendência. Ele aponta uma nova safra de artistas nacionais
com visual andrógino, entre eles Felipe Catto, o rapper Rico Dalasam e o cantor
de soul e funk Liniker, que é gay e se apresenta em shows como mulher. “O
mercado está mais aberto. Eles estão bebendo da fonte andrógina e usando
imagens femininas”, explica.
*A matéria,
publicada em junho de 2016, fez parte do projeto “Androginia – Transgressão à
Heteronormatividade Binária”. Para mais detalhes da iniciativa, clique aqui.
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